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Entre o Logos e o Nada: a Palavra Criadora e o Abismo da Vontade

Armando Cruz

“No princípio era o Logos...” – João 1:1

“No princípio era o Logos...” – João 1:1

E se, antes de todas as coisas, antes do tempo, do espaço, das galáxias e dos suspiros, houvesse apenas Palavra — não dita, não escrita, não formulada, mas viva —, uma Palavra que, por ser, tudo faria ser, não como um gesto mecânico de um deus-artesão, mas como um dom inefável de um Deus-Amor, que cria não por necessidade, mas por superabundância?

Pois bem, “No princípio era o Logos”, disse João, e quem ouviu com pressa talvez tenha pensado que se tratava de um princípio cronológico, um início qualquer, um ponto fixo na linha do tempo, quando na verdade o que se dizia era muito mais vasto: no princípio, quer dizer, na fonte, no fundamento, na razão última de tudo o que existe, estava o Verbo, e esse Verbo não era um som, mas uma presença, não uma fórmula, mas uma relação, e essa relação era Deus, e por meio dela, tudo o que é veio a ser.

E então vem o homem, feito à imagem desse Logos, portador de palavra, mas também de vontade, e é aí que se abre o abismo.

Porque entre o Logos que cria e a vontade que escolhe há um vão, e nesse vão mora o mistério da liberdade, esse dom ambíguo que pode construir catedrais ou forjar instrumentos de tortura, que pode amar até o fim ou negar a própria origem. A vontade humana, ferida desde o Éden, conhece o bem, mas deseja o que brilha, ou o que grita, ou o que oferece poder, e por isso tantas vezes prefere o nada — porque o nada é mais fácil, mais rápido, mais moldável à nossa imagem, enquanto o Logos exige escuta, entrega, esvaziamento.

Gregório de Nissa diria que a imagem de Deus em nós só se realiza plenamente no movimento de ascensão, na busca incessante, na tensão entre o que somos e o que somos chamados a ser. Mas esse chamado, sutil como o sopro no Horeb, só pode ser ouvido quando calamos o ruído da vontade desordenada. O Logos fala, mas não grita. E por isso, a vontade precisa se curvar para escutar, como Maria, que nada disse, mas acolheu, e por isso gerou.

Evágrio Pôntico, mestre dos desertos, compreendeu isso ao escrever que “quem ama o silêncio aproxima-se de Deus”, pois no silêncio há espaço para a Palavra verdadeira, não aquela que repetimos aos gritos para convencer os outros de nossas certezas, mas aquela que se inscreve no coração, como fogo e como luz.

E então compreendemos que o Logos não é apenas o que foi no princípio, mas o que sustenta cada instante, cada respiração, cada átomo. Ele é o fio que não se vê, mas que segura o universo, e por isso, afastar-se dele é cair no nada, não apenas o nada do não-ser, mas o nada do não-sentido, da fragmentação, da confusão, do barulho que nos promete liberdade enquanto nos arrasta para longe de nós mesmos.

Thomas Merton, em seus momentos mais silenciosos, percebia que “o verdadeiro eu não pode ser encontrado enquanto não for abandonado o falso eu”, e o falso eu, esse que grita, que deseja, que quer possuir, constrói-se exatamente sobre o esquecimento do Logos, sobre o fechamento à escuta.

Entre o Logos e o nada há, portanto, uma ponte tênue e perigosa: a liberdade humana. E o drama espiritual consiste em escolher, a cada instante, de que lado se inclina o coração. Pois seguir o Logos é renunciar ao controle, é perder para ganhar, é morrer para nascer, é calar para ouvir, é entrar no abismo escuro da fé confiando que ali, e só ali, a luz verdadeira brilhará.

No princípio era o Logos. E hoje, agora, neste instante mesmo, Ele ainda é. Não apenas como memória, mas como presença, não apenas como origem, mas como destino. A Palavra que era no princípio ainda nos chama, ainda nos sustenta, ainda deseja fazer morada.

Mas é preciso querer, e querer não o que queremos, mas o que nos é dado querer, na graça.

E então, finalmente, o abismo da vontade humana pode tornar-se lugar de encontro, de rendição, de reconciliação. Entre o Logos e o nada, escolhemos o Logos. Ou melhor: deixamo-nos escolher por Ele.

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                      Armando Cruz

Traducteur | Philologue romane | Professeur de langues | Commissaire d'expériences linguistiques

 

Atelier linguistique, culturel et de traduction

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