Armando Cruz
“Retira-te, ó alma, no silêncio, pois aí Deus se manifesta.” – Evágrio Pôntico
“Retira-te, ó alma, no silêncio, pois aí Deus se manifesta.” – Evágrio Pôntico
Há um silêncio que não é ausência de som, mas plenitude de sentido. Um silêncio que não anula, mas revela, que não exclui, mas abraça; silêncio este que os Padres do Deserto buscaram não para fugir do mundo, mas para ouvir, pela primeira vez, o mundo em sua verdade última, aquela que não se impõe pelos decibéis, mas sussurra no fundo da alma, onde nenhuma palavra humana tem autoridade senão a que se curva e silencia.
Evágrio Pôntico, esse monge do século IV que não falou por vaidade, mas por experiência, conheceu o deserto não como metáfora, mas como lugar concreto de combate, onde as vozes interiores multiplicam-se antes de desaparecerem uma a uma, e ele nos diz que o silêncio é o lugar onde Deus se manifesta, não como trovão, mas como brisa, não como discurso, mas como presença, não como ideia, mas como ser.
O silêncio que buscamos — ou que nos busca — é o silêncio do coração, que não se reduz ao calar da boca, mas exige o calar das paixões, dos juízos, da ansiedade de possuir, da compulsão de responder, do medo de estar só. Silêncio não é isolamento, mas comunhão profunda. Na tradição hesicasta, essa via espiritual que floresceu no coração do Oriente cristão, a oração do coração, repetida sem cessar — “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador” — torna-se o compasso desse silêncio, não por sufocar as palavras, mas por harmonizá-las com o ritmo da eternidade.
O hesicasmo, cujo nome vem de hesychía, a quietude, é mais do que técnica: é estado, é morada, é liturgia secreta entre a criatura e o Criador. Seus praticantes sabiam que, para ouvir Deus, não bastava retirar-se do mundo exterior, era preciso retirar o mundo de dentro de si. E que, mesmo quando todos os ruídos cessam, resta ainda o mais insistente deles — o do próprio ego — que se debate, deseja, argumenta e teme, até que enfim se renda ao nome que salva, e nesse nome encontre repouso.
“Retira-te, ó alma”, diz Evágrio, como quem aconselha a alma a entrar no seu santuário mais profundo. Mas quem pode retirar-se verdadeiramente senão aquele que já se reconheceu exilado? Retira-se quem sabe que vive disperso, fragmentado, esvaziado pelas distrações, pelas máscaras e pelos gritos do mundo, e então, com humildade, começa o caminho de volta. Retira-se quem compreende que o mundo, por mais cheio de sons, não supre o abismo do coração, que apenas Deus pode preencher.
E é nesse silêncio que não se trata de produzir ausência, mas de criar espaço — espaço para que Deus seja Deus, e não projeção, não justificativa, não ídolo. Silêncio como matriz da revelação, como o útero escuro onde a Palavra se faz carne, como o instante antes do Fiat Lux, como a espera de Maria, como a vigília no Getsêmani, como o suspiro da cruz.
Thomas Merton escreveu certa vez que “a oração não é um ‘a fazer’, mas um ‘ser com’”, e esse ‘ser com’ começa no momento em que cessamos de tentar controlar a experiência de Deus, e simplesmente nos expomos à sua presença, sem defesas, sem planos, sem performance. O silêncio é o sacramento da vulnerabilidade.
Não se trata de romantizar a solidão, mas de descobrir nela o eco do próprio Deus, que muitas vezes fala quando não esperamos, e cala quando mais ansiamos ouvir, não por crueldade, mas porque a palavra certa só pode ser dada ao coração preparado. E talvez por isso, o silêncio seja o primeiro e último degrau da escada espiritual.
O hesicasta não é um escapista, mas um vidente. Vê porque nada mais há a impedir a visão. Porque retirou a poeira dos olhos, limpou a lente da alma, cessou o barulho interior. Ele ora não para ser visto, mas para ver. E no ver, ama; e no amar, repousa.
No fim, talvez seja assim: Deus está sempre falando, mas somos nós que falamos demais para ouvir. Por isso os santos calaram-se, os monges retiraram-se, os místicos repetiram o nome, e os verdadeiros buscadores aprenderam a ficar, mesmo sem respostas, pois sabiam que só o silêncio é digno do mistério.
Então, retiremo-nos. Mas não por fuga, e sim por fidelidade. Retiremo-nos ao interior, onde Deus ainda espera ser reconhecido não pelo que faz, mas por quem é.
E nesse silêncio, que tudo purifica, talvez, quem sabe, ouçamos finalmente a voz que nos chama pelo nome desde antes de tudo.
Por Armando Cruz