A casa do ser e outras ruínas
- Armando Cruz - Fragmentos do Verbo
- 8 de jun.
- 6 min de leitura

Dizem que a primeira palavra é o choro, mas eu, teimoso, prefiro pensar que antes do choro houve o silêncio, e que esse silêncio não era ausência, era espera, talvez um compasso de alma ainda não habituada à carne, ou talvez um intervalo para que o mundo aprendesse a escutar antes de falar. E se assim foi, o verbo não se fez carne de imediato, não desceu num trovão nem se alojou em livros, mas permaneceu à espreita nas dobras do tempo, enrolado como pergaminho antigo, esperando que alguém, em alguma língua, ousasse desenrolá-lo.
E ali está o homem, esta criatura feita de ossos e enigmas, com a boca aberta para nomear o mundo, como se dizer fosse um modo de existir, como se tudo o que é, só é quando dito, pronunciado, oferecido ao outro através do frágil canal que chamamos linguagem. E se cremos em Heidegger — não apenas cremos, mas o escutamos como se escuta um velho profeta que não grita, mas murmura —, então a linguagem não é só instrumento, não é só meio, mas morada. Morada do ser, ele diz. Não parede, não abrigo, mas casa. Palavra que guarda, que protege, que ao mesmo tempo limita e revela.
E de onde vem essa casa, pergunto, se a linguagem não é tijolo nem cimento? Vem da escuta, talvez. Do modo como escutamos o mundo antes mesmo de sabermos que o escutamos. Vem das palavras que nos precedem, dos nomes que herdamos, dos mitos que nos moldam mesmo quando fingimos que não mais acreditamos. A linguagem, como casa, é também um espelho; e quem já entrou numa casa de espelhos sabe que ali dentro, cada gesto é devolvido multiplicado, deformado, reencantado.
Mas não me apresso. Porque falar de linguagem é como tentar desenhar o vento com as mãos: quanto mais se tenta agarrá-lo, mais ele escapa. E, no entanto, precisamos continuar tentando, pois há algo em nós que pressente que só seremos inteiros quando formos ditos, e que só diremos verdadeiramente quando formos escutados, não como eco, mas como presença. Heidegger, esse pastor de palavras, escreveu que “a linguagem é a casa do ser. Na sua habitação mora o homem.” E ao escrever isso, desinstalou a linguagem do seu lugar trivial, como quem tira um objeto da gaveta e o devolve ao altar.
Contudo, convém perguntar: que espécie de casa é essa onde mora o ser? Teria janelas para fora ou seria labirinto sem portas? Porque não é qualquer palavra que nos abriga. Há palavras que ferem como granizo, há palavras que erguem muros, que sufocam, que deformam a paisagem interior. Há também as palavras ocas, que soam muito e dizem pouco, como conchas vazias lançadas à praia da comunicação. Mas há aquelas outras, raras, de madeira antiga, palavras que estalam sob os pés como chão confiável, palavras que nos acolhem sem julgamento, que nos devolvem a nós mesmos quando já não sabíamos como voltar.
A essas palavras, talvez, chamemos poéticas. Não por serem floreadas ou ricas em artifício, mas por abrirem brechas no real, por permitirem que o indizível espreite por entre as frestas. A poesia, nesse sentido, não é gênero literário, é gesto ontológico, é a coragem de habitar a linguagem como quem entra num templo, sabendo que ali o chão pode falhar, mas também que ali, e só ali, o ser pode emergir. O poeta, como o filósofo, é um operário da linguagem, mas enquanto um cava o fundamento, o outro sopra as cinzas para reacender o lume.
E agora que a casa foi nomeada, é preciso perguntar: o que acontece quando ela ruge, desaba, se torna escombro? O que acontece ao ser quando a linguagem falha, quando se perde a palavra justa, quando o dicionário inteiro se cala diante da dor ou do amor? Porque há momentos — e todos os vivemos — em que a linguagem não basta. E não é porque não sabemos falar, mas porque o mundo nos excede, e então gememos, cantamos, silenciamos. Ou inventamos novos vocábulos, como crianças que ainda não aprenderam que as coisas já têm nome. A língua, nesse ponto, é sempre inacabada, sempre por vir. É uma casa em reforma eterna, feita de andaimes e metáforas.
Heidegger, ao dizer que a linguagem é a casa do ser, não nos dá resposta, dá tarefa. Dá labirinto. Porque se o ser habita a linguagem, então só conheceremos o ser se ousarmos entrar nesse labirinto de palavras, cruzando suas paredes móveis, aceitando perder-nos para depois talvez reencontrar alguma centelha de sentido. Não é à toa que tantos místicos escreveram como quem caminha no escuro, confiando mais no ritmo das frases do que na clareza das definições.
E eis que também nós, aqui, escrevemos assim: não para definir, mas para habitar. Não para reduzir o mundo a conceitos, mas para atravessá-lo com frases longas, com desvios, com voltas — como quem visita uma casa antiga, abrindo portas com cuidado, respeitando os fantasmas, escutando os rangidos do tempo.
E ao habitar essa casa, ou melhor, ao sermos por ela habitados, descobrimos que não estamos sozinhos, que nunca estivemos, pois a linguagem não é um monólogo, nunca foi, é sempre um entre, um vão, uma ponte, e mesmo quando acreditamos estar falando para nós mesmos — essa coisa vã que chamam de monólogo interior, que de interior tem pouco e de monólogo ainda menos — estamos, na verdade, convocando vozes, herdando ritmos, repetindo frases que um dia ouvimos da boca da mãe, do professor, do inimigo, do poeta, vozes que se instalaram em nós sem pedir licença e que agora ecoam como se fossem nossas, e talvez o sejam, pois ao fim e ao cabo, o que somos senão aquilo que conseguimos dizer?
Mas é preciso ir mais fundo, mais abaixo da superfície das palavras, onde a linguagem não é ainda discurso, mas desejo de dizer, impulso inaugural, força bruta que antecede a gramática. Porque há, sim, uma arqueologia do verbo, e se cavarmos o suficiente, encontraremos sob as camadas da língua racional um chão feito de espanto, de balbucio, de encantamento, e talvez por isso a linguagem seja também feitiço, seja poder, seja magia — e não me refiro aqui a metáforas, mas a realidades, pois quem já não experimentou o poder de uma palavra lançada na hora certa, que ilumina, que cura, que corta?
Talvez por isso as antigas tradições sabiam que nomear era um ato perigoso, quase sagrado. No Gênesis, Adão não apenas observa o mundo, ele o nomeia, e ao nomear, cria; os cabalistas, por sua vez, acreditavam que cada letra carrega uma centelha divina, e os indígenas de várias partes do mundo hesitam em pronunciar certos nomes fora dos rituais, pois sabem que palavra não é só som, é corpo, é presença, é gesto.
Heidegger compreendia isso, e por isso falava da linguagem como Ereignis, esse termo intraduzível que carrega em si a ideia de um acontecimento essencial, de algo que não apenas ocorre, mas revela, desvela, dá a ver o que estava escondido. Quando falamos, não apenas comunicamos, mas fazemos vir à luz o que antes estava no escuro. E quando calamos, nem sempre é por falta de palavras, mas porque o ser, naquele instante, recusa-se a habitar qualquer forma.
E aqui chegamos a uma das grandes tragédias do nosso tempo: o esvaziamento da linguagem, sua banalização, sua redução a instrumento técnico, a mercadoria. Porque se a linguagem é casa, então hoje habitamos condomínios de plástico, repetimos chavões como quem empilha móveis prontos, e nos esquecemos de que toda palavra precisa respirar, precisa ecoar, precisa ser escolhida como se fosse a última. A pressa nos desalojou do verbo. As redes, tão sociais quanto ruidosas, nos ensinaram a digitar sem pensar, a falar sem escutar, a responder antes mesmo de compreender a pergunta.
E eu pergunto: onde está o ser, nesse tumulto de palavras rápidas, nesse ruído de vozes que não dizem, apenas gritam? Onde mora o ser quando a linguagem se torna ruína? Talvez não more. Talvez esteja exilado, vagando como fantasma em busca de abrigo. E talvez, só talvez, a tarefa de cada um de nós seja reconstruir essa casa, pedra por pedra, verbo por verbo, até que possamos novamente habitar uma linguagem que nos revele e não nos oculte.
Mas reconstruir exige escuta. E essa é uma arte que esquecemos. Escutar o outro, escutar o silêncio entre as palavras, escutar a própria linguagem quando se rebela e se recusa a nos servir. Porque há momentos em que o melhor que podemos fazer por uma palavra é deixá-la em paz, não forçá-la a caber num discurso que não é seu. Como o jardineiro que não puxa a flor antes do tempo, o pensador da linguagem precisa saber esperar.
E talvez por isso o silêncio não seja o contrário da linguagem, mas sua condição. O lugar de onde ela nasce e para onde retorna. O fundo escuro que permite que a palavra brilhe. Heidegger dizia que o ser se diz através da linguagem, mas não se diz todo de uma vez. Há sempre um resto, uma sombra, um intervalo. E é nesse intervalo que habitamos.
Não é fácil viver aí. Exige paciência, exige desapego. Porque a tentação de preencher todo espaço com discurso é grande, sobretudo num mundo que confunde fala com poder, visibilidade com existência. Mas há uma sabedoria ancestral no não dito. Os poetas sabem disso, os tradutores sabem disso, os amantes também. E talvez seja essa a morada verdadeira do ser: não na palavra que se impõe, mas naquela que se oferece, com humildade, com espanto, com o risco de não ser compreendida.
Por ora, detenho-me aqui. A casa continua a ser construída, e a cada frase lançamos mais um tijolo nesse abrigo invisível que chamamos linguagem.
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