O ato de pensar com o outro
- Armando Cruz - Fragmentos do Verbo

- 5 de jun.
- 3 min de leitura
Há um silêncio particular que antecede a aula. Um silêncio que não é ausência de som, mas a presença ainda latente de uma possibilidade: a de que algo aconteça entre dois seres que se colocam à escuta. Esse silêncio é o lugar onde o pensamento começa — não como resposta, mas como pergunta. A aula, antes de ser uma transmissão de conteúdos, é a instalação de um espaço onde o pensamento se arrisca a nascer. E nisso reside sua mais profunda natureza filosófica: ela é, por essência, um exercício de liberdade.
Ensinar, neste sentido, não é repetir o já sabido, nem ilustrar o já aceito. É abrir uma fresta no mundo para que o inesperado possa emergir. Por isso, toda aula é, potencialmente, um acontecimento. Mas não qualquer acontecimento: é um daqueles raros em que se percebe, em pleno gesto cotidiano, uma tensão metafísica. Como quem tateia o invisível. Como quem atravessa, com palavras, o véu do indizível.
Os antigos mestres sabiam disso. Sócrates, que jamais fundou escola nem escreveu doutrina, nos deixou, ainda assim, uma pedagogia eterna: ensinar como quem parteira. A maiêutica, seu método, não era ensinar verdades prontas, mas ajudar o outro a parir suas próprias perguntas. A aula, então, se configura como parto — não de respostas, mas de inquietações. O mestre não ensina o caminho: caminha junto. Não mostra o horizonte: aponta para o céu e pergunta o que o outro vê.
Há um erro trágico em imaginar a aula como uma performance do saber. Ela não é espetáculo, é diálogo. Não é palco, é mesa. Uma mesa entre presenças que se afetam, se transformam, se interrogam mutuamente. Ninguém sai ileso de uma aula verdadeira. O mestre, se escutou de fato, saiu com mais dúvidas. O aprendiz, se pensou de verdade, saiu com mais sede. E é essa sede que torna o mundo respirável.
A linguagem, ali, não é ferramenta — é travessia. Cada palavra dita na aula carrega o peso de séculos, de culturas, de lutas. Falar numa aula é falar com o tempo. E ouvir é aprender a escutar vozes que vêm de longe, que nos atravessam sem pedir licença. A aula, então, é também um exercício de hospitalidade: acolher o estranho, o outro, o diverso — e descobrir-se, no espelho da alteridade, mais humano.
Mas a aula não é apenas um entre-lugar simbólico. Ela é também gesto concreto, ético, político. Num mundo saturado de informação, ensinar é escolher o que merece ser lembrado. É cuidar da memória, cultivar o espírito, resistir à vulgaridade do imediato. A aula nos obriga a parar. A estar. A pensar devagar. A perguntar por quê. E nisso, já se faz revolução.
Há uma liturgia própria na aula: os corpos que se reúnem, o ritmo da fala, a cadência das ideias, os silêncios que se impõem. Cada gesto carrega uma intenção, cada pausa revela um mundo. O quadro negro, a lousa branca, o livro aberto, o olhar atento — tudo isso é matéria de pensamento. Tudo isso é linguagem. E onde há linguagem, há filosofia.
Por isso, ensinar não é profissão. É vocação. E não qualquer vocação: é a vocação de criar mundos. De dizer ao outro: "Você pode pensar". De devolver ao ser humano sua dignidade primeira — a de ser intérprete da realidade, e não apenas consumidor dela. O mestre, nesse sentido, é um escultor de espaços internos. Ele não molda o outro, mas lhe oferece espelhos, mapas, perguntas. E isso basta.
O mais belo da aula é que ela não termina quando termina. Seus ecos ressoam por dentro, nos dias seguintes, nos anos por vir. Às vezes, uma frase ouvida num dia qualquer retorna como farol numa noite escura. Às vezes, uma ideia germina em silêncio e floresce décadas depois. A aula verdadeira planta sementes de infinito no solo provisório do cotidiano.
E talvez seja essa a sua mais alta filosofia: afirmar que o conhecimento não é uma posse, mas um encontro. Que a sabedoria não se impõe, mas se compartilha. Que pensar com o outro é uma forma de amor. E que ensinar, ao fim e ao cabo, é isso: acender uma vela num mundo que insiste em apagar as luzes — e esperar que ela, mesmo pequena, ilumine o caminho de alguém.





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