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Tempo, memória e a trama do eu: fragmentos que nos fazem ser

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Dizem que o tempo é um rio — e, como todo rio, escapa entre os dedos, corre sem se prender, indiferente ao nosso desejo humano de segurá-lo, de aprisioná-lo em calendários, em relógios que marcam segundos frios e repetitivos. Mas o tempo vivido, o tempo que habita o corpo, a alma e as palavras, não é apenas um fluxo que passa; é tecido, trama sutil, desenho invisível que bordamos sem plena consciência, fio a fio, na tapeçaria complexa que chamamos identidade.

Henri Bergson, esse pensador dos tempos profundos, ensinou-nos a ver o tempo para além do relógio, do instante mecânico e da sucessão matemática dos segundos. Para Bergson, o tempo verdadeiro é a duração — uma experiência contínua, fluida, onde o passado não se perde, não é uma sombra apagada, mas um presente vivo, impregnando o agora, transformando-o. Essa duração é uma espécie de ventre, onde passado e presente se abraçam num mesmo movimento, indissociáveis e interdependentes. É a duração que faz com que sejamos quem somos, não um amontoado de momentos desconexos, mas uma vida vivida em seu contínuo de sentido.

E é aqui que a memória se revela não como um simples depósito de dados, um arquivo morto onde guardamos fatos congelados em tempos pretéritos, mas como uma fonte criativa, uma potência viva, capaz de recriar incessantemente o que fomos, de iluminar o que somos e de projetar o que ainda seremos. Ela é mais do que recordação; ela é reinvenção. E nesse gesto reside a sua beleza poética. Pois que outra arte, senão a poesia, teria esse poder de transformar em presente aquilo que parecia perdido? Que outra linguagem senão a da poesia poderia revelar o invisível pulsar das emoções, dos gestos, dos silêncios que marcam o nosso existir?

Mas não paramos por aqui. Paul Ricoeur, que mergulhou nas águas da memória e da narrativa, ampliou esse pensamento com uma contribuição fundamental: a identidade não é somente memória, é também narrativa — o fio que costura os fragmentos dispersos da experiência numa tapeçaria compreensível, numa história que nos damos a nós mesmos para sermos. Somos aquilo que contamos, e a narrativa é a ponte tênue que atravessa o abismo entre o caos das lembranças e a ordem do sentido. Cada palavra que pronunciamos sobre nós mesmos, cada frase que moldamos, é um gesto de resistência contra o esquecimento e contra a fragmentação; é a tentativa de criar uma continuidade, um eu coerente que sobreviva às múltiplas vozes interiores, aos sonhos dispersos, às sombras que nos habitam.

Mas essa construção do eu nunca é definitiva — antes, é uma obra inacabada, um labirinto aberto. A memória é seletiva, a narrativa é um ato de escolha; por isso, a identidade se revela múltipla, fluida, por vezes contraditória. Não há uma única história, mas muitas histórias, entrelaçadas e entrelaçantes, que se alternam e se sobrepõem como camadas translúcidas de vidro. Como os fragmentos do verbo que você tanto valoriza, essas narrativas partem de pedaços que só se fazem inteiros no gesto de serem ditos, no encontro do contar-se e do escutar-se. O sujeito, assim, é um artesão delicado, costurando o tempo em fragmentos que só se tornam tecido ao serem pronunciados e compartilhados.

Penso, então, na memória como um espelho quebrado, cujos cacos refletem pedaços distintos de luz, diferentes ângulos do mesmo rosto. E nesse reflexo, às vezes distorcido, reconhecemos a nós mesmos — não um rosto fixo, mas uma dança de expressões, um movimento que não cessa. A identidade é essa dança, esse balé ininterrupto entre o ser e o lembrar, entre o instante que se vai e o instante que se cria. Cada memória reativada é um ato de criação, cada narrativa formada é um fio que nos prende ao nosso próprio ser e, ao mesmo tempo, nos lança ao desconhecido.

E o tempo? Ah, o tempo não é inimigo nem tirano, mas parceiro silencioso dessa dança. O tempo vivido é o chão onde pisamos, o ar que respiramos, o ritmo que nos guia. Ele não se deixa medir em segundos ou horas, mas se mede no ritmo do coração, no tremor da voz, na cadência das palavras. É dentro desse tempo que a memória pulsa e a identidade se constrói, sempre fragmentária, sempre aberta.

Assim, ao narrar nossas histórias, ao revisitar nossos fragmentos, não estamos apenas relembrando — estamos recriando, reexistindo. Somos, afinal, artesãos do tempo e da memória, e nossa vida, essa obra de fragmentos dispersos, só se torna inteira no verbo, no gesto de dizer, no silêncio que escuta.

Mas por que insistimos em contar histórias? Por que precisamos formar esse fio de sentido, essa narrativa que nos une, que nos permite resistir à dispersão do mundo? Porque, para Ricoeur, a narrativa é a condição para a identidade, é o que nos torna humanos. Contar histórias é afirmar que somos um projeto, que não somos a soma passiva do que nos aconteceu, mas sujeitos que se fazem e se desfazem na busca constante por sentido.

E nesse ponto, a subjetividade se revela, inteira e paradoxal. O eu narrado é sempre um eu em construção, um eu que se transforma a cada frase que pronuncia. Não somos estáticos, mas movimento e metamorfose, somos fragmentos e sínteses, somos a história que contamos e a história que escapou das palavras.

É por isso que a fragmentação não é defeito, mas característica do humano. Assim como os poetas trabalham com imagens dispersas, com versos fragmentários, com silêncios e pausas, o sujeito se revela em pedaços, em flashes, em retalhos que apenas na língua encontram uma possibilidade de unidade — ainda que provisória.

E essa é a beleza do verbo, desse movimento incessante do dizer. Porque na palavra, no verbo, no ato de contar, reside o poder de transformar o efêmero em eterno, o confuso em claro, o invisível em visível. O verbo é nosso instrumento sagrado, nossa morada, nossa ponte sobre o abismo do tempo.

Assim, ao abraçar o tempo vivido e a memória como construção da identidade, não nos entregamos à melancolia do que se perdeu, mas celebramos a força da criação, do recomeço. Somos, sempre, obras em andamento, histórias por vir, fragmentos que buscam sentido na vastidão do ser.

E, no silêncio que acompanha o fim desta reflexão, fica a certeza de que a identidade não é um destino fixo, mas um movimento perpétuo, uma dança onde o tempo, a memória e o verbo se entrelaçam num só corpo, uma só alma, um só ser.

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                           Armando Cruz

Tradutor | Filólogo Românico | Professor de Idiomas|Curador de Experiências Linguísticas

 

Atelier Linguístico, Cultural & Tradutológico

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