top of page

A língua como casa e travessia



Há quem veja a língua apenas como um código, um meio para comunicar-se, um sistema funcional que nos permite comprar pão, pedir informações, escrever e-mails. Mas quem habita a linguagem com mais lentidão — e, talvez, mais assombro — sabe que ela é muito mais do que isso. A língua é casa, mas também é caminho. É teto, e é travessia. É onde somos, e onde nos tornamos.

Aprender uma nova língua, para mim, sempre foi como abrir uma nova janela na alma. E ao ensinar, percebo que cada aluno, ao se debruçar sobre um idioma, não está apenas adquirindo vocabulário: está se reconfigurando por dentro. Porque toda língua estrangeira é, num primeiro instante, uma espécie de exílio. Você está ali, diante de palavras que não reconhece, sons que não domina, estruturas que parecem desconfiar do seu pensamento. Mas pouco a pouco, aquele território estranho começa a lhe oferecer abrigo. E o que era exílio, vira abrigo. O que era travessia, vira lar.

A língua materna é aquela onde moramos sem perceber. A segunda língua, ou a terceira, é aquela onde aprendemos a habitar com atenção. A cada verbo novo, a cada preposição dominada, vamos costurando a roupa da nossa nova pele. O idioma vai deixando de ser apenas ferramenta e passa a ser extensão do nosso corpo, prolongamento da nossa escuta.

Talvez por isso eu me refira ao ensino como uma "alfaiataria linguística" — porque não se trata de moldar todos num único molde, mas de criar com o outro um espaço sob medida, onde a linguagem não é imposta, mas descoberta, acolhida, ajustada. Cada pessoa tem sua forma de pensar, de sentir, de respirar. E a língua precisa se moldar a isso para que o processo seja não apenas eficaz, mas belo.

Como tradutor e filólogo, sei que a língua não é neutra. Carrega mundos, histórias, visões de mundo. Traduzir é, em certo sentido, tornar-se peregrino entre casas. E ensinar é oferecer mapas: mapas com margens em branco, onde o aluno pode também desenhar sua própria geografia.

Fragmentos do Verbo nasce desse entendimento: a linguagem não é apenas o que dizemos, mas o que somos quando dizemos. E por isso, aprender uma língua não é um fim — é um meio de se deslocar, de se expandir, de se hospedar em si mesmo, com mais consciência e mais vastidão.

A língua é ponte. Mas é também cais.

Comments


  • Instagram
logo

                           Armando Cruz

Tradutor | Filólogo Românico | Professor de Idiomas|Curador de Experiências Linguísticas

 

Atelier Linguístico, Cultural & Tradutológico

──────────────────────────────────

Contato

Pergunte algo

bottom of page