Do silêncio que prepara a palavra
- Armando Cruz - Fragmentos do Verbo

- 4 de jun.
- 2 min de leitura

Sempre me perguntei por que algumas palavras chegam com peso e outras, com leveza. Por que há frases que atravessam os séculos, resistem aos ventos da mudança, enquanto outras mal sobrevivem ao dia em que nascem. Talvez porque toda palavra só nasce depois do silêncio — e o que a precede é, em verdade, o seu maior alicerce.
A cultura do imediato, do ruído constante, ensinou-nos a falar sem pausa, a responder sem escuta, a escrever antes de compreender. Mas há uma arte antiga, quase extinta, de guardar silêncio. Silêncio não como ausência, mas como potência. Silêncio como presença densa, campo fértil onde a palavra cria raiz. Porque só aquele que soube calar profundamente pode falar com profundidade.
Ao ensinar línguas, percebo que o maior desafio não é pronunciar, mas escutar. Escutar os outros, sim — mas sobretudo escutar a si mesmo. Quantas vezes um aluno se cala não por falta de vocabulário, mas por medo de se expor, de tropeçar na fonética, de revelar o sotaque, de deixar escapar a alma? É preciso criar, então, um espaço onde o silêncio seja permitido, onde a hesitação seja bem-vinda, onde o erro não seja ruído, mas caminho.
O silêncio tem forma. Tem corpo. Ele respira. E cada língua oferece um modo distinto de silenciar. Em francês, o silêncio vem entre vogais sussurradas, entre articulações que não se concluem — é uma dança que deixa passos no ar. Em português, há pausas suaves, como quem repousa o pensamento antes de continuar. Cada idioma molda o silêncio à sua maneira, e aprender isso é, também, aprender a respeitar os ritmos interiores da linguagem.
Como tradutor, sempre soube que o que não se diz é tão essencial quanto o que se escreve. Tradução não é apenas verter palavras: é saber sustentar os silêncios. Às vezes, é necessário não traduzir, ou melhor, traduzir com o vazio, com a ausência significativa que permanece entre duas línguas. Porque o que não se diz, se bem sustentado, ecoa mais fundo que mil palavras.
Fragmentos do Verbo nasceu assim — de silêncios escutados com atenção, de palavras maturadas no tempo justo, de ideias que pedem pausa antes de emergirem. E o ensino, tal como a escrita, é este ato de escutar. Escutar a língua antes de falá-la. Escutar o silêncio antes de escrever. Escutar o aluno antes de ensinar.
Vivemos tempos em que falar é um reflexo, e calar, uma escolha quase heróica. Mas se a linguagem é, como creio, uma ponte entre almas, é no silêncio que ela se ancora, é no não dito que ela respira.
Por isso, aqui, nesta alfaiataria linguística e cultural que construo com cada aluno, com cada fragmento de verbo, há espaço para o silêncio. E quem aprende a escutar — e a se escutar — encontra, finalmente, o timbre de sua própria voz.
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Fragmentos do Verbo: onde o silêncio é o primeiro verbo.




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