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O corpo da língua, a carne do pensamento



Há uma confusão muito comum — e quase sempre silenciosa — entre língua e linguagem. Dizem que quem aprende uma língua adquire uma ferramenta, como quem empunha uma chave de fenda, um martelo, uma navalha. Como se a língua fosse coisa externa, objeto utilitário, tecnologia neutra. Mas nunca acreditei nisso. Desde cedo percebi que a língua não é algo que se carrega no bolso; é algo que nos carrega, que nos atravessa, que nos molda por dentro como se fôssemos barro e ela, o sopro que nos forma.

É por isso que, ao ensinar idiomas, recuso a metáfora da máquina. Ensinar uma língua é tocar a carne do pensamento alheio, é aproximar-se do modo como o outro habita o mundo, não apenas do modo como o nomeia. Porque não falamos apenas com a boca, com os sons e os vocábulos que de lá escapam — falamos com o corpo inteiro, com a memória cultural, com a emoção que se aloja nas sílabas. E cada língua tem um corpo distinto, uma respiração própria, um compasso único.

O francês, por exemplo, não é apenas uma sucessão de palavras elegantes e nasais; é uma inclinação para o detalhe, uma maneira de rodear a ideia antes de tocá-la diretamente, como quem corteja antes de declarar. Já o inglês, sobretudo o dos negócios, é direto, estratégico, feito de pragmatismo e precisão, como quem salta o intervalo para chegar ao ponto. Ensinar cada um desses idiomas exige mais do que vocabulário: exige escutar seus corpos, compreender suas danças, perceber onde eles se recolhem, onde avançam, onde se emocionam em silêncio.

E o tradutor, entre todos, talvez seja aquele que mais sente esse deslocamento entre corpos linguísticos. Porque traduzir não é simplesmente substituir palavras — é vestir uma ideia com outra pele, é trocar o sopro mantendo o espírito, é permitir que a carne da linguagem continue viva, mesmo quando transplantada. Um bom tradutor, como um bom professor, sabe que ensinar ou traduzir é sempre lidar com o invisível: o que está entre as palavras, o que pulsa nas entrelinhas, o que não se diz, mas se encarna.

Nas aulas que ministro — e nas quais tento mais ouvir do que falar — percebo que cada estudante traz consigo uma relação com a linguagem que é tão física quanto intelectual. Alguns têm medo de pronunciar; outros se sentem nus diante da gramática. Há quem ache que falar uma nova língua é trair a sua; e há também os que descobrem nela uma nova casa, um lugar onde, pela primeira vez, podem ser quem são sem pedir licença à pátria.

E talvez isso seja o mais belo: compreender que aprender uma língua é aprender um novo modo de habitar o mundo. Não há nada de superficial nisso. É um gesto de coragem, de reinvenção, de abertura. E se a linguagem é a carne do pensamento, aprender outra língua é nascer de novo. Com novos músculos, novos silêncios, novas pausas.

Por isso ensino com vagar, com afeto e com escuta. Porque sei que, para muitos, aprender uma nova língua não é apenas adquirir uma nova habilidade: é permitir-se reconstruir por dentro, é costurar uma nova pele sobre a alma.

Fragmentos do Verbo é esse ateliê: onde palavras ganham corpo e pensamento se faz carne.

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                           Armando Cruz

Tradutor | Filólogo Românico | Professor de Idiomas|Curador de Experiências Linguísticas

 

Atelier Linguístico, Cultural & Tradutológico

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